Um transplante de cabeça para Stephen Hawking

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Na última semana, o físico inglês Stephen Hawking foi hospitalizado, “gravemente doente”, mas felizmente o susto parece ter passado e ele já anda se recuperando. Para alguém que há quarenta anos recebeu o prognóstico de apenas “dois ou três anos de vida”, a sobrevida foi não apenas um pouco mais longa, como incluiu uma brilhante carreira iluminando um bom bocado de nosso conhecimento sobre o Universo. As palavras que lhe faltam na garganta fluem ainda mais impactantes através de seu sintetizador de voz. O Marco Santos escreveu sobre o episódio e o legado que Hawking deixaria ainda que partisse hoje de forma muito melhor do que eu conseguiria: “Mesmo que morras, serás sempre o mais forte de todos“.

Por aqui, com nosso ceticismo e paixão pelo insólito, acabou por ser interessante uma questão que talvez nunca tenha lhe passado seriamente pela cabeça. Seria possível transplantar o brilhante cérebro de Hawking — junto com o resto de sua cabeça — para um corpo saudável? Seria este um transplante de cabeça? Ou de corpo? Futurama?

Há alguns anos traduzi e publiquei um artigo contando “Uma Breve História das Cabeças de Cachorro Decepadas“. Envolvia as experiências do Dr. S.S. Bryukhonenko no Instituto de Fisiologia e Terapia Experimental na antiga União Soviética. Experiências com cabeças de cachorro decepadas, mantidas vivas artificialmente por alguns segundos. Cabeças decepadas vivas. O tema é intrigante e perturbador, e o filme divulgando as experiências, com o singelo título de “Experimentos na Ressuscitação de Organismos“, inspirou mesmo um videoclipe recente da banda Metallica com nada menos que zumbis. Embora seja provavelmente apenas uma dramatização (e certo exagero) dos resultados reais, como Ken Freedman bem comenta no artigo, os soviéticos sim alcançaram certo sucesso na área, incluindo a criação dos cachorros de duas cabeças pelo também soviético Vladimir Demikhov. O doutor conectou a cabeça de um cachorro ao corpo de outro, e os dois (ou seria um?) viveram por certo tempo.

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[Cachorros de Demikhov em exibição no Museu de História Médica na Letônia. Foto de Andy Gilham]

“Para quê criar cachorros de duas cabeças?”,você pode perguntar. E terá feito a mesma pergunta que um brilhante neurocirurgião americano chamado Robert White. Responsável por inovadoras técnicas de neurocirurgia, White sem dúvida explorou os limites mais extremos de sua área com uma idéia relativamente simples. Nada de cachorros de duas cabeças, White buscou concretizar em seres muito humanos o transplante de cabeça. Ou de corpo inteiro, dependendo de seu ponto de vista. E em busca de um modelo animal mais próximo de nós, White sim concretizou seu objetivo com macacos.

Continue lendo para conferir um fascinante documentário apresentando uma entrevista recente com White, acompanhada de cenas de seus experimentos. Segundo ele, o transplante de cabeça (ou de corpo inteiro) seria possível hoje, e o físico Stephen Hawking poderia ser o primeiro a se beneficiar de tal técnica.

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Motherboard – Dr. White’s Total Body Transplant – parte 1 de 7

Na primeira parte somos apresentados a White em um McDonald’s de Geneva, Ohio. O doutor, repleto de diplomas e filhos, comenta como o cérebro é a essência do que somos.

Motherboard – Dr. White’s Total Body Transplant – parte 2 de 7

O bom doutor relata como a remoção de tumores cerebrais nos anos 1950 e 60 já envolvia a retirada de até metade do cérebro de pacientes, que podiam sobreviver ao procedimento. “Ninguém sabia até onde poderíamos ir, claro que deveria parar em um ponto”.

Motherboard – Dr. White’s Total Body Transplant – parte 3 de 7

Onde somos lembrados de como a experimentação em animais, embora polêmica, foi não só importante como essencial para diversos avanços médicos que salvaram milhões de vidas. Humanas. Ficamos sabendo ainda que a técnica revolucionária de perfusão para resfriamento do cérebro para cirurgias foi desbravada por White, permitindo operações mais complexas e demoradas em cérebros que do contrário morreriam em minutos. Preservar cérebros vivos por mais tempo. Parecia uma boa idéia.

Motherboard – Dr. White’s Total Body Transplant – parte 4 de 7

Finalmente chegamos perto dos finalmentes. Os experimentos soviéticos com cachorros inspiraram a aplicação em animais mais próximos de nós. Macacos. Manter o cérebro isoladamente era inviável, mas a cabeça inteira, preservando os nervos e outros sistemas associados… a idéia se tornava mais plausível.

Motherboard – Dr. White’s Total Body Transplant – parte 5 de 7

Nos anos 1960 e 70 o neurocirurgião finalmente experimenta em macacos. Com relativo sucesso: as cabeças ligadas aos novos corpos respondiam a estímulos por períodos prolongados.

Motherboard – Dr. White’s Total Body Transplant – parte 6 de 7

Os finalmentes. Os perturbadores filmes dos experimentos com macacos. White defende o “transplante completo de corpo” para tetraplégicos, com gráficos ilustrativos do processo.

Motherboard -Dr. White’s Total Body Transplant – parte 7 de 7

Robert White menciona como Stephen Hawking poderia se beneficiar de um transplante completo de corpo. “Sua função cerebral, fisiologicamente, poderia até melhorar”, ele diz. “O importante é: nós poderíamos fazer isso“. E termina explicando como tem uma mesa reservada no McDonald’s local.

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O documentário é excelente, sem se preocupar em julgar ou ridicularizar (muito) White. Em tempos e sociedades em que mesmo a pesquisa com células-tronco embrionárias são tema de grandes desentendimentos, não é surpresa que as pesquisas e experiências com o transplante de cabeças (ou corpos) sejam um tabu, quando menos porque envolvem a experimentação em animais. Quando mais porque questionam conceitos éticos e morais fundamentais sobre quem somos, ou melhor, quem seríamos se fôssemos submetidos a tal operação.

Mesmo P.Z. Myers, notório ativista ateu e em cujo blog descobri este documentário, chamou White de um “cientista maluco“. Fazendo referência a um personagem de Lovecraft popularizado em filmes de terror, Myers comentou como “é difícil ficar mais Herbert West que isso“. Enquanto é comparado a um criador de zumbis, talvez o mais inusitado nesta história é que o Vaticano chegou a ter o mesmo White como consultor em bioética (!). No documentário acima vêem-se fotos dos encontros e conversas que o cirurgião teve com pelo menos dois Papas, incluindo João Paulo II. Não que o Vaticano endosse a idéia de transplante de cabeças, mas seguramente a idéia não é repulsiva para que tenham White como consultor. Entre todas as especialidades, em bioética.

Fato é que o Vaticano sim endossou o uso de órgãos animais em humanos. Aonde a ressurreição entra aí, eu não faço idéia.

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Até onde se sabe, nunca se tentou nenhuma operação de transplante completo de corpo em ninguém. Os experimentos de White foram os que foram mais longe, e tiveram sucesso a ponto dos macacos transplantados viverem por vários dias, embora sem qualquer controle ou sensação sobre o corpo. Eles sim tinham os sentidos associados à cabeça preservados: podiam ver, ouvir, mesmo cheirar e sentir gostos. Em suas cabeças conectadas a corpos que não eram (originalmente) deles. Os avanços foram a tal ponto que por volta de 1980, White conseguiu fazer com que o corpo respirasse sem a ajuda de aparelhos. Mas as coisas pararam aí.

Desde então, em 2001 experimentos similares foram conduzidos com ratos na Escola Médica Jichi, em Tochigi, Japão. Nesses experimentos, também razoavelmente bem-sucedidos, as cabeças foram conectadas a corpos inteiros, efetivamente criando ratos de duas cabeças, de forma similar aos experimentos soviéticos de Demikhov. De certa forma regrediu-se desde as iniciativas de White, hoje aposentado.

Em uma notícia da BBC, o professor Stephen Rose, da Open University, mostrou-se indignado com a sugestão de que tais procedimentos poderiam beneficiar pessoas. “Isto é tecnologia médica ultrapassando os limites da loucura e completamente além do que é necessário”, declarou.

“É completamente errôneo sugerir que uma cabeça ou cérebro transplantados estejam de fato conectados a algo exceto em termos de fluxo sanguíneo ao corpo a que foi transplantado. Não estão controlando ou se relacionado a esse corpo de qualquer outra forma. É cientificamente enganoso, tecnicamente e cientificamente irrelevante e além disso uma violação grotesca de qualquer consideração ética. É mistificação chamar isso seja de transplante de cabeça ou cérebro”.

Para Rose, a forma apropriada de auxiliar tetraplégicos seria continuar as pesquisas para a regeneração do sistema nervoso. Isso, contudo, ainda não ajudaria pacientes como… Stephen Hawking.

Outras questões em jogo envolvem o fato de que um corpo inteiro (ou “total”) poderia salvar uma “cabeça”, uma vida, mas poderia alternativamente salvar ou melhorar várias vidas se os seus órgãos fossem transplantados separadamente. Seguramente prioridade deve ser dada a beneficiar o maior número de pessoas com os recursos disponíveis. E lidar com corpos como recursos é ainda outra questão sensível. O próprio White reconhece que seu procedimento de “transplante total de corpo”, ainda que bem-sucedido, poderia beneficiar alguns, ou “no máximo 10.000 pessoas. Não estamos falando da cura para o câncer aqui”.

E no entanto, como White pergunta sem muita hesitação, quem negaria a Stephen Hawking o direito de um novo corpo? Hawking dificilmente concordaria com o procedimento, como mesmo Robert White nota de passagem, mas a rejeição da idéia como absurda ou grotesca me parece um tanto irracional. Pelo momento, os riscos e dificuldades parecem não justificar a experimentação em humanos (e, alguns diriam, em animais), mas em alguns anos, quando se possa regenerar conexões nervosas por exemplo, pode ser não só possível como apropriado em alguns casos especiais considerar a idéia de um… transplante de cabeça. Ou “de corpo completo”. Pense nisso.

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Tudo isso parece muito para sua cabeça? Bem, enquanto o Dr. White estava transplantando (ou não) cabeças de macaco, Hollywood explorava… “A Coisa com Duas Cabeças“:

A emocionante aventura de um homem rico branco que tem sua cabeça transplantada para o corpo de um desbocado homem negro. Esta dupla da pesada fica pronta para arrumar muitas confusões.

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Quer mais ciência inusitada? Esta coluna foi adaptada do original no 100nexos, de onde indicamos mais um pouco do que publicamos nas últimas semanas:

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