A extraordinária Budapeste

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A Yupin é uma tailandesa que conheci durante um mochilão pela América do Sul. Magra e baixinha, parecia a mais frágil das criaturas. Um dia fomos almoçar em uma birosca perto do albergue e me surpreendi com as suas atitudes. Sem saber quase nada de inglês ou espanhol, ela entrava nos lugares como se fosse uma habitante local.

Nos restaurantes olhava o cardápio passando a falsa impressão de que entendia tudo. Apontava para qualquer nome no menu e – se o garçom retrucasse com algum detalhe do tipo “bem passado ou mal passado” – ela acenava afirmativamente. A maldita não ligava para o que viesse, ela simplesmente comia tudo. Andava nas ruas e gesticulava, entrava na casa dos outros. Nos passeios vagava em todo e qualquer lugar, não tinha medo de se perder. Seu lema era simples:

Se você tem medo de conhecer pessoas novas, lidar com outros idiomas e experimentar pratos exóticos, então é melhor não viajar para outro país.

Quando decidi ir à Budapeste me lembrei de Yupin. Na Hungria a língua é tão complicada que mereceu até uma menção em um afamado livro de Chico Buarque. Em um dos capítulos ele diz que o húngaro é a “única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita”.

Há quem desista diante de uma viagem a um país com uma língua muito estranha. Porém, eu não estava nada preocupado. Dessa vez usaria o estilo de Yupin e pronto. Meu objetivo era provar que a falta de fluência em determinado idioma não é uma desculpa para ficar em casa.

Já no desembarque comecei a aplicar o método. Avistei um homem no interior do Aeroporto Liszt Ferenc usando um crachá, deduzi que era um taxista. Não disse nada, apenas mostrei o endereço do meu hotel impresso no papel. Ele me pediu para seguí-lo, mas gesticulei dizendo que não. Precisava primeiro acertar o preço, por isso fiz o gesto universal de esfregar o dedo indicador no polegar. O motorista entendeu na hora e acertamos em 7000 florins (24 euros). 1 a 0 para mim.

Naturalmente é possível ir de trem ou ônibus executivo até o centro de Budapeste, mas preste atenção para não pegar o vagão errado ou você pode parar em outro país (veja aqui).

O carro era bem confortável e pude ir tranqüilo admirando a paisagem. O inverno estava para começar e naquela hora o entardecer já seguia adiantado e amarelo. Da janela eu notava os detalhes da periferia de Budapeste com suas casas e fábricas em estilo comunista, um jeito estranho de construir só o básico.

Após meia hora chegamos ao centro de Peste, do lado leste do rio. Cabe lembrar que a cidade é divida pelo Danúbio em Buda e Peste, os nomes das duas antigas localidades que se uniram para formar a capital da Hungria. Peste é mais o centro em si, com comércio, muitos restaurantes e a agitação de uma grande metrópole. Já Buda concentra as atrações históricas. Ambas são muito próximas, então tanto faz ficar em uma ou outra, lembrando que talvez em Buda saia mais caro.

Hospedei-me nos apartamentos Gozsdu Court, um pouso bem perto das principais atrações turísticas. Não tem cara de hotel, parece um apartamento residencial mesmo. Paguei 24.000 florins (80 euros) por três dias de estadia, um quarto confortável que incluía uma pequena geladeira, microondas e banheira no lavabo.

Os que já visitaram outras cidades da Europa – em especial as mais famosas – vão notar que os preços em Budapeste são sensacionais. No meu tempo lá pude perceber que é possível comer bem e fazer passeios gastando valores bem menores do que se encontra em Paris, Londres ou Roma. O melhor é que a capital da Hungria não deixa a desejar em nada quando os quesitos são cultura, lazer e beleza.

Depois de deixar as malas e reforçar os agasalhos, caminhei até a estação Nyugati Pályaudvar para comprar uma passagem. Em alguns dias eu deixaria Budapeste rumo à Áustria, então já queria garantir meu lugar no trem. Não tinha agendado qualquer atividade além dessa, a caminhada até lá serviria para coletar minhas primeiras impressões sobre Budapeste.

Peguei a avenida Bajcsy-Zsilinszky e vi muitas lojas e lugares legais para um bom jantar. Achei também cabines para fazer câmbio. O mais engraçado foi um salão de beleza no qual umas senhoras colocavam os pés dentro de um aquário enquanto uns peixinhos roxos beliscavam seus pés. Soube posteriormente que é um tipo de tratamento para retirar a pele morta, pobres peixinhos!

Quando finalmente encontrei a Nyugati Pályaudvar fiquei pasmo com o seu grande tamanho. Lá dentro é possível caminhar por setores apinhados de pessoas e – apenas virando por um corredor – sair em um lugar completamente vazio. Tentei por tudo achar o guichê de venda de passagens internacionais, mas em vão. Escrevi em um papel “Budapeste-Viena”, o desenho de um tíquete e um cifrão. O primeiro cidadão que encontrei já soube imediatamente o que eu procurava. 2 a 0 para mim.

A compra foi mais simples ainda, apenas mostrei o destino e a data. A atendente me mostrou os horários no computador e eu apontei.

No caminho de volta acabei encontrando uma dessas feirinhas de praça. Em uma das barracas tinha uma grelha com carvão em brasa. Sobre a grelha uns roletes de madeira envolvidos por pão em formato de caracol. Olhei a placa da tenda para tentar entender o que era aquilo, mas não entendia nada.

A atendente observou minha cara de “cachorro quando ouve um barulho estranho” e veio ao meu encontro. Como a maioria das garotas da Europa Central, tinha um nariz delicado, olhos azuis e seios fartos. Em húngaro ela explicava o que era, mas eu não entendia nada. E nem precisava, eu estava no modo Yupin, as palavras eram desnecessárias. Só acenei afirmativamente e comprei um. Valeu a aposta, pois era um delicioso pão doce assado enrolado na madeira, fato que lhe rendia um sabor único. 3 x 0 para mim, estava ampliando o placar.

Antes de retornar ao hotel passei em um mercadinho. Minha ideia era comprar meu café da manhã para o dia seguinte, aproveitando que meu quarto tinha uma cozinha quase completa. Nas embalagens dos alimentos eu contava somente com as figuras para entender do que se tratava o conteúdo. Escolhi um suco vermelho, um queijo trançado e o que eu julguei serem torradas. Tomei um belo banho na banheira e apaguei. No dia seguinte descobri que o suco era horrível e a torrada uma lástima, porém o queijo era bem gostoso. 3 x 0,6 para mim, o húngaro começava a reagir.

Meu primeiro objetivo do dia era atravessar a ponte Széchenyi Lánchíd e ir conhecer a famosa Várhegy, a colina que abriga o Budavári Palota (Castelo de Buda ou Palácio Real). Fiz a travessia a pé e o vento frio que vinha do Danúbio quase me congelou. Logo do outro lado há um funicular que leva os visitantes à uma praça na lateral do castelo. Pegar o funicular (Budavári Sikló) não é a única maneira de subir à colina (1000 florins), mas certamente é por onde se sacam as melhores fotos.

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O Castelo de Buda visto da ponte Széchenyi Lánchíd

A vista da colina é esplendida. É possível ver as águas verdes do Danúbio, o movimento na Széchenyi Lánchíd, a lateral do Parlamento e a abobada da Basílica de Santo Estevão. Na pequena praça o que chama mais atenção é a imensa estátua do pássaro Turul. Esse animal mitológico aparece nas diversas lendas magiares sobre a criação da Hungria. Creio que seja uma das maiores estátuas de ave que já vi, parece abrigar a cidade inteira sob suas asas.

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O funiculi, funicular, funiculi, funicular!

Logo ao lado está o Castelo de Buda, o qual abriga diversas atrações. Uma delas é o museu Magyar Nemzeti Galeria com suas obras de artistas plásticos húngaros.

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O imenso Turul

Seguindo as ruazinhas da colina cheguei ao Bastião dos Pescadores. Mais uma vez os húngaros prestam honras aos seus antepassados, dessa vez na figura dos pescadores que – durante a Idade Média – defenderam aquela margem do Danúbio dos invasores estrangeiros. O edifício foi desenhado pelo arquiteto Frigyes Schulek em uma curiosa mescla dos estilos neoclássico e neogótico.

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A ponte e ao fundo a abobada da Basílica de Santo Estevão

Schulek também foi responsável pela restauração da espetacular Igreja de São Matias, logo ao lado do Bastião. O templo data do século IX, mas durante sua existência sofreu avarias por causa de distintos conflitos. O arquiteto então reconstruiu o prédio dizendo que pesquisara as prováveis influências estéticas originais, porém hoje já se sabe que isso não foi feito. Desse modo, a bela igreja gótica com seu telhado repleto de ladrilhos coloridos é um trabalho autoral de Schulek.

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O Bastião dos Pescadores

A essa altura bateu a fome e deixei a igreja para achar algum lugar para comer. A oferta de restaurantes é grande, porém é um local muito turístico e os preços vão de acordo com essa realidade. Decidi então apenas fazer um lanche simples para depois ter um jantar mais reforçado. Logo em uma esquina, próximo da lateral norte do Teatro do Castelo, há um charmoso café chamado Szent Korona Cukrászda. A decoração interna é quase um passeio turístico, tão ornado e bem conservado é o ambiente. O menu totalmente traduzido para o inglês e os garçons bilíngues facilitaram a comunicação. Comi umas bolachas e tomei um chocolate, custou cerca de 2300 florins (8 euros).

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O detalhe do teto colorido da Igreja de São Matias

E depois do almoço acabei visitando um dos lugares mais bizarros que já vi na vida. Saindo do café Cukrászda e seguindo direto pela rua Uri encontra-se uma singela portinha. Ela dá acesso aos Labirintos de Buda, um passeio sensacional para quem não tem medo do escuro.

A colina que guarda a cidade tem origem vulcânica. A pedra é porosa e com o tempo a água formou túneis e cavernas. Há milênios os habitantes da região descobriram isso e passaram a usar o subsolo como abrigo. Durante as infindáveis guerras da Idade Média e também da Era Contemporânea muita gente usava esses lugares para se esconder. Daí surgiram as lendas sobre fantasmas e até tesouros escondidos.

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Detalhe da porta do Labirintus

O caso é que atualmente os húngaros transformaram os túneis em atração turística. São 2000 florins (7 euros) para explorar os quilômetros de labirinto. É possível conhecer alguns traços das arquiteturas dos povos que residiram ali, incluindo colunas em estilo turco e celas para prisioneiros. O ambiente tem iluminação, porém alguns trechos são bem escuros e a sensação é estranha, pois dá medo de se perder. Quem tem claustrofobia pode sofrer um pouco, mas o passeio é imperdível. Cabe lembrar que – além da entrada da rua Úri – existe outra na rua Lovas Út.

Deixei para trás a escuridão e resolvi descer a colina. Margeei o rio até encontrar o Parlamento da Hungria. Országház – como é conhecido pelos locais – foi concebido em estilo neogótico, tendo sido inaugurado no aniversário de mil anos do Estado húngaro. É sem dúvida um dos prédios mais belos do mundo. É curioso ressaltar que o arquiteto Imre Steindl, responsável pelo projeto, nunca chegou a vê-lo completo, pois ficou cego pouco tempo antes do edifício ficar pronto.

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O sol inunda o Országház

Atravessei a ponte Margid It e visitei rapidamente a Ilha Margarida, um pedação de terra bem no meio do curso do Danúbio. É um lugar bem arborizado e agradável, perfeito para uma tarde preguiçosa dessas com cerveja e tira-gosto. O grande marco arquitetônico da ilha é uma caixa d’água muito bonita, tão bonita que não parece uma caixa d’água.

A essa hora o entardecer já transformava Buda em uma silhueta negra. Voltei pela ponte e decidi comer alguma coisa antes de voltar para o apartamento. Na rua Margit encontrei um restaurante com um nome enorme, Óriás Becsiszelet Vendegló Kávézó, tem mais ac(ss)ento que um teatro. O cardápio estava em húngaro. Olhei para a garçonete e apontei para o menu, um gesto ambíguo para levá-la a sugerir algo. Ela acabou indicando uma opção e disse algo que depois compreendi como sendo gipsy, ou seja, uma receita da gastronomia cigana. Basicamente era uma massa de trigo parecendo umas gravatinhas, acompanhadas de uma carne cozida com muito molho e uma salada. O tempero fantástico e o preço muito justo, paguei mais ou menos 3500 florins (10 euros) por um refri e um belo prato de comida. O método Yupin já apontava um score de 4 x 0,6 para mim.

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O belo ocaso do lado Buda

Voltei a pé para o bairro do hotel e entrei em um bar. Em Budapeste é permitido fumar em locais fechados e a atmosfera do boteco estava azul. Fiquei um pouco e logo encontrei outro com um ar mais limpo. Experimentei algumas cervejas e logo o cansaço do dia corrido bateu. Não estivesse próximo da minha hospedagem eu teria dormido no bar mesmo…

Na manhã seguinte encarei um café da manhã num lugar chamado Király Cukrászda. Uma senhorinha me atendeu, uma mescla de mau humor e atenção. Comi um panini e uns biscoitinhos doces, paguei 1500 florins (5 euros). Só apontei para as figuras na parede, outra refeição sem tradutor, uma goleada.

Meu roteiro naquele dia consistia em visitar a Sinagoga Dohány e depois pegar a avenida Andrássy até a Praça dos Heróis e o parque urbano Városliget. Após uma breve caminhada cheguei à sinagoga. Na Europa é comum que visitemos na maioria das vezes templos cristãos, por isso esse passeio é interessante.

A Dohány possui uma ornamentação magnífica e imediatamente é possível notar a ausência de imagens, algo distinto das igrejas católicas. Há no mesmo complexo o Memorial dos Judeus Húngaros, são 1600 florins (cerca de 5 euros) para visitar as duas atrações. No memorial destaca-se uma notável árvore de metal na qual cada uma das folhas leva o nome de um judeu húngaro morto durante o Holocausto.

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Dohány Utcai Zsinagóga, a maior da Europa

Da sinagoga segui para a avenida Andrássy, talvez a rua mais famosa da cidade, lar de embaixadas, prédios históricos e bons restaurantes. Caminhando por ela encontra-se a Ópera de Budapeste, o Octógono, a praça de Franz Liszt e a surpreendente Casa do Terror. Apesar do nome curioso, não se trata de uma atração de parque de diversões. Na verdade é um museu que procura retratar aos anos de chumbo na Hungria, em especial os tempos em que fascistas e comunistas estavam no poder. Custa 2000 florins (7 euros) a entrada.

Enfim cheguei à Praça dos Heróis, Hősök tere. Novamente os húngaros reverenciam seus ancestrais, mais especificamente os líderes das sete tribos que fundaram seu Estado. Nas duas extremidades da praça estão o Museu de Belas Artes e o Palácio das Artes, provas de que o povo da Hungria valoriza muito as atividades culturais.

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O Palácio das Artes

Logo atrás da Hősök tere está o agradável parque Városliget. Além do zoológico e bons banquinhos para sentar, a grande atração de lá é o termas Széchenyi, o maior de Budapeste. As águas possuem qualidades terapêuticas, mas também servem muito bem ao viajante que deseja apenas um belo banho quente. Os custos de passar um dia nesse paraíso encravado bem no centro da cidade começam em 4000 florins (13 euros). O prédio que abriga as termas foi construído no início do século XX em estilo neobarroco. Por isso, mesmo quem não quer nadar nas piscinas, pode dar uma passada e conhecer o edifício.

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Os patos no laguinho do parque Városliget

No parque Városliget ainda há o castelo Vajdahunyad, um mimo construído para celebrar os mil anos de uma importante vitória militar da Hungria. O prédio foi erguido mesclando diversos estilos, uma maneira de homenagear as várias manifestações arquitetônicas do país. Bem ao lado há uma pista de patinação e um laguinho com patos. O legal é que existem máquinas com ração nas proximidades, então o visitante pode se divertir alimentando as aves.

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Mulher vestida de dona Morte alimenta patinhos em Budapeste

Meu último dia em Budapeste tinha rendido muito bem, mas o idioma húngaro não me deixaria sair de lá sem uma última lição de humildade. Naquela altura eu goleava por 5 a 0,6. Voltando pela Andrassy decidi “almoçar” (já eram quase cinco da tarde) em um restaurante o qual não me recordo o nome por motivos de trauma profundo. Lá dentro duas matronas muito simpáticas me atenderam de modo exemplar. Arrogante, eu mais uma vez apontei qualquer coisa no cardápio e esperei. O método Yupin mostraria suas falhas.

Em 10 minutos sobre minha mesa repousava uma sopa bizarra feita de leite, gotas enormes de óleo boiando e vegetais em estilo picles (azedinhos). As duas mulheres ficaram por ali esperando que eu aprovasse a receita. Elas ficaram me observando comer até o fim. O gosto não era nada bom, mas para não fazer desfeita eu tomei tudo.

Saí caminhando pela Andrassy esquentando as mãos nos bolsos da jaqueta. Já estava bem escuro e as luzes da cidade brilhavam intensamente. Era minha última noite em Budapeste, no dia seguinte eu sairia cedo rumo à Áustria. O placar fechava em 5 x 1,6 para o húngaro – nada mal – mas o gosto ruim da sopa ainda tomava minha língua.

Não tinha problema, o importante é que em momento algum eu perdi a coragem. Quando se pensa no privilégio que é conhecer o mundo in loco, se preocupar com um prato ruim ou um idioma difícil é uma bobagem sem sentido.

Abraço!

Pedro Schmaus

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