Melhor filme já feito sobre a escravidão

O já consagrado “12 anos de escravidão”, vencedor do Oscar de melhor filme deste ano, é um épico baseado no livro autobiográfico escrito em 1853 por Solomon Northup, filho de escravos liberto e nascido em Nova Iorque, mas sequestrado em sua cidade natal e vendido como escravo para fazendeiros na Louisiana.

A partir daí, Northup, homem sensível e educado, afeito ao violino, desce rumo ao abismo do trabalho forçado, do destrato frequente, da anulação de sua personalidade, da violência física sem limites durante os 12 anos aludidos no título.

Um quadro de agonia descrito pela primeira vez com verve na página 30 do livro: “Cheguei a pensar que morreria sob o açoite daquele amaldiçoado bruto. Ainda agora minha carne estremece sobre os ossos quando me recordo daquela cena. Eu me sentia inflamar, e meu sofrimento não poderia ser comparado a nada menos do que as abrasadoras agonias do inferno”.

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O cineasta britânico Steve McQueen, como já é de seu feitio desde os ótimos “Hunger” — talvez sua mais crua e difícil obra, sobre guerrilheiros do Exército Republicano Irlandês (IRA) pegos nos anos de tolerância zero do império britânico e que encontram na greve de fome o único modo de resistência — e “Shame” — uma reflexão melancólica sobre o esvaziar dos sentidos e afetos de nossos tempos, na perspectiva de um homem viciado em sexo –, desce aos círculos infernais na companhia de Northup e carrega consigo eu, você e quem mais estiver à frente da tela.

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Longe de, como já andaram escrevendo, fazer da “crueldade espetáculo”, a crueza das composições dos quadros nos espancamentos e a naturalidade com que esses acontecem durante todo o filme servem a uma adaptação fiel da história original, ainda que bastante amenizada com relação ao que é relatado no livro, para melhor se adequar à narrativa audiovisual.

Detratores entraram numas de dizer que o filme é cansativo (deveria ser divertido ver exercícios de sadismo, não?) e “santifica” os escravos enquanto “demoniza” os escravagistas. Numa boa? Cala a boca, brother. Essa conversinha fiada serve a um discurso racista de que falar de escravidão na vida dos negros de hoje é nada além de revanchismo. Não é.

Da mesma maneira que não é só pra arrancar dinheiro dos alemães que os judeus fazem filmes anuais sobre o holocausto. É para que jamais se perca de vista a que nível pode descer a humanidade quando virtude e ideais são deixados de lado em nome da afirmação da força de um sobre o outro. Ou de um povo sobre os demais.

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De volta à discussão audiovisual, muitos reclamam desse já descrito estilo cru, sem concessões a qualquer ideia de “mundo bom, e pessoas com lados bons e ruins, mas que ao final valem a pena” ou qualquer blablabla semelhante. No cinema de McQueen, ele não toma partido, mas descreve fielmente seu texto, e neles, até agora, não há espaço para unicórnios multicoloridos a desenhar um horizonte onde o bem vence o mal e espanta o temporal.

Não, em sua obra, somos obrigados a nos deparar com a face escondida no espelho, com os segredos que disfarçamos em meio aos risinhos ridículos e piadinhas mal contadas. Somos obrigados a nos encarar como realmente somos enquanto humanidade. Monstros a tentar (alguns nem tanto assim) domar o que nos come de dentro pra fora, acima de tudo.

Em “12 Anos de Escravidão”, o ritmo é o do texto e este, como em toda grande obra, prevalece. Genuinamente sem concessões ou bravatas. Sem tirar uma vírgula sequer do estilo que o tirou do circuito independente e seduziu gente como Brad Pitt, que praticamente bancou a produção.

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Arte gigantesca de um diretor de escola absolutamente erudita e mise-en-scène clássico, sem essa de querer agradar pós-moderninhos ou os menos preparados. Coisíssima nenhuma. Bravo, McQueen, falar de escravidão não é fazer exerciciozinho de cultura pop. Deixa isso pro Tarantino e seus seguidores. Não indicado para menores de 14 anos.

Por Rodivaldo Ribeiro