A Igualdade é Flicts

“Em uma autocracia, uma pessoa manda nas coisas; em uma oligarquia, algumas pessoas mandam nas coisas; em uma democracia, ninguém manda em nada”. – Celia Green

Se é possível descobrir matemática avançada a partir de uma brincadeira de Sérgio Mallandro, indo de probabilidades condicionadas à teoria de jogos, adentrando mesmo em questões filosóficas sobre o Apocalipse, um dos mais populares programas da TV brasileira não poderia ficar atrás.

Nesta coluna veremos como o Big Brother Brasil pode ajudar a demonstrar um teorema pouco conhecido, provado matematicamente há algumas décadas. De forma singela, o teorema demonstra que a democracia é a rigor impossível.

Você nunca mais verá televisão da mesma forma. Incluindo o horário eleitoral.

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Preferências circulares
Comecemos pensando pequeno. Imagine uma versão do reality show em que o vencedor é decidido apenas por três diretores do programa – alguns talvez pensem que todos os programas sejam assim, mas qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência. Perto do final, sobram apenas três participantes, que podemos chamar de A(lemão), B(ambam) e C(ida).

Os três diretores votam em um papel para escolher o vencedor, dispondo os participantes por ordem de preferência. Muito bem. Ao final, descobrem que têm um grande problema. Os votos são:

Diretor 1: A > B > C
Diretor 2: B > C > A
Diretor 3: C > A > B

Nenhum dos participantes conseguiu ser o preferido de dois diretores. Pior: se você analisar o quanto cada participante é preferido em relação a outro, descobrirá que todos permanecem empatados. A situação de cada um dos três candidatos é exatamente a mesma, e este paradoxo inconveniente para sistemas de votação foi notado inicialmente pelo Marquês de Condorcet, ainda no século 18. Ainda não existia BBB naquela época.

Pode parecer improvável que essa simetria exata de preferências ocorra. Mais adiante veremos isto em mais detalhe, mas antes vale notar algo curioso aqui.

Caso um dos participantes abandone a disputa, ocorre algo inusitado. Ao invés de os dois participantes restantes continuarem empatados, como presumiríamos a princípio, como pareceria “justo”, o que ocorre é que um deles passará a ser o ganhador!

Veja o que ocorre se Bambam abandonar a disputa. Com as preferências dos três diretores inalteradas, teremos agora:

Diretor 1: A > B > C = A > C
Diretor 2: B > C > A = C > A
Diretor 3: C > A > B = C > A

Epa! Cida é claramente a ganhadora, com dois votos. Por outro lado, se Alemão abandonar a disputa, quem será o ganhador?

Diretor 1: A > B > C = B > C
Diretor 2: B > C > A = B > C
Diretor 3: C > A > B = C > B

Bambam, e não Cida, vence mais um BBB! Em nossa situação, puramente hipotética é preciso repetir, Bambam não precisou fazer nada para ganhar. E, o mais importante, a ordem de preferência dos diretores também não mudou. A simetria dos votos foi quebrada, não por um dos participantes conquistar uma maior simpatia, e sim pela mera saída de um concorrente na votação. Como na Corrida Maluca, às vezes a forma mais fácil de ganhar pode ser eliminar o concorrente certo. A menos, claro, que você seja o Dick Vigarista.

Se isso pareceu injusto, é apenas o começo. Possibilidades bizarras rondam os sistemas de votação.

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“Meu nome é Enéas”
Candidatos políticos não são, ou não deveriam ser, defensores de uma única bandeira. Se fossem, contudo, ao menos evitariam o surgimento de ainda mais paradoxos eleitorais. Porque escolher um candidato com base nas diversas posições que defenda pode levar novamente a situações desconfortáveis.

Considere que haja duas questões vitais em uma eleição na sua cidade. A primeira delas é se, para equilibrar a contas, o futuro prefeito permitirá a construção de uma Penitenciária federal ou se, ao invés, irá cortar os investimentos em Saúde. A outra questão essencial para o futuro de seus concidadãos é se o prefeito deve usar Jeans ou Terno durante o exercício de seu mandato.

Um candidato que defenda a construção da Penitenciária e o uso de Jeans bradará a bandeira PJ, e assim por diante. Há apenas quatro combinações possíveis nessas duas questões: PJ, PT, SJ e ST. Ah sim, considere também que a sua cidade tem apenas três eleitores.

Uma pesquisa de opinião descobriu que os eleitores têm as seguintes ordens de preferência:

Eleitor 1: SJ > ST > PJ > PT
Eleitor 2: ST > PT > SJ > PJ
Eleitor 3: PJ > PT > SJ > ST

Quem seria o futuro prefeito? Está claro que cada um dos três eleitores tem uma primeira preferência diferente. Mas olhando para a segunda preferência, um candidato que apóie as posições PT* parece promissor. No entanto, para dois eleitores (1 e 2), ST parece melhor PT, e bastaria defender essas posições para ganhar de um candidato que apóie PT. Ao mesmo tempo, para dois eleitores, a posição SJ é melhor que a ST. E assim por diante.

Há, como vimos no BBB hipotético antes, uma simetria, e nenhuma posição ganha de todas as outras por maioria. Além desse “empate técnico”, contudo, algo mais sinistro acontece aqui.

Para dois eleitores (1 e 2) o corte de gastos em Saúde é preferível à Penitenciária, sendo parte da primeira escolha. E também para a maioria dos eleitores (1 e 3), o Jeans é mais apropriado que o Terno. Se houvesse votos separados em cada uma dessas questões, Saúde e Jeans seriam as escolhas vencedoras, claramente. Seria assim natural esperar que o candidato que apoiar as posições S e J deva ganhar, certo?

Errado. Podemos ver que a posição SJ combinada perde para a posição PT para dois dos eleitores (2 e 3). De fato, se houvesse apenas dois candidatos, um defendendo as posições preferidas, isoladamente, pela maioria – SJ – e outro aquelas da minoria, PT, ganharia o candidato da minoria. Com voto majoritário. Mais um adorável paradoxo eleitoral.

Grosso modo, fenômenos semelhantes ocorrem em eleições bem reais. Confiando cada vez mais em pesquisas de opinião, e moldando suas posições de acordo com elas, políticos acabam freqüentemente fazendo de tudo para agradar grupos minoritários, no que pode parecer irracional frente à desaprovação da maior parte dos outros eleitores.

Mas ainda que a maior parte das pessoas discorde de uma posição política, essa preferência pode estar distribuída de forma heterogênea, fazendo com que candidatos consigam mais votos defendendo idéias impopulares, e no entanto agradáveis a pequenos grupos que lhes garantirão mais votos no saldo final.

A democracia já não deve estar parecendo tão justa assim. Mas o golpe de misericórdia seria dado em pleno século 20.

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O Teorema de Arrow
Em um trabalho com o inocente título de “Uma dificuldade no Conceito de Bem-Estar Social“, publicado em 1950, o economista Kenneth Arrow apresentava um teorema que provaria com rigor em sua tese de doutorado no ano seguinte. De fato, uma pequena “dificuldade no conceito de bem-estar social”, o teorema demonstra que nenhum sistema de votação minimamente razoável irá refletir sempre, de forma acurada e consistente, a preferência de seus eleitores.

A forma como Arrow provou seu teorema matemático de profundas implicações sociais é interessante especialmente em seu raciocínio final. Ele primeiro definiu formalmente que a escolha individual deve atender a dois requisitos: a comparabilidade (entre dois elementos, prefere-se um a outro), e a transitividade (se você prefere x > y, e y > z, então prefere x > z).

Ele então definiu claramente o que seria um “sistema de votação minimamente razoável”. Deveria atender às seguintes características:

Liberdade de escolha individual:
Todo eleitor pode ter qualquer ordem de preferências que desejar, sem nenhuma limitação;

Independência de alternativas irrelevantes:
Se você prefere cachorros a gatos, a criação de um macaco com quatro bundas pelo milagre da engenharia genética não deve influenciar seu amor por cachorros ao invés de gatos;

Eficiência Pareto:
Em nome de um economista italiano que ponderou sobre essas questões sociais algumas décadas antes, diz que se todos eleitores têm uma preferência de cachorros a gatos, então a preferência social, o resultado das eleições, também deve refletir essa preferência;

Abaixo a ditadura:
O resultado da função social deve refletir as preferências de todos os eleitores. Não pode ser apenas fruto das decisões de um único eleitor, que seria o Grande Ditador.

O economista simplesmente analisou todos os sistemas eleitorais conhecidos e mostrou que sempre levam a contradições. “Não existe método de combinar preferências individuais para produzir uma escolha coletiva que atenda a todas estas condições”, escreveu. Em particular, Arrow mostrou que as condições minimamente razoáveis só são atendidas se houver um eleitor decisivo, em outras palavras, o único sistema eleitoral livre de paradoxos seria a ditadura.

O teorema é assustador devido à sua generalidade. Poderíamos pensar que frente a paradoxos eleitorais como os abordados mais acima, bastaria tomar medidas corretivas especiais, ou que deva existir alguma forma de votação perfeita. Porém, o teorema de Arrow demonstra que o problema é mais fundamental**.

Ainda mais preocupante é que paradoxos eleitorais como o de Condorcet, abordado no BBB hipotético acima, não são tão raros assim. No caso com apenas três diretores e três concorrentes, o paradoxo surge quando a primeira, segunda e terceira escolha de cada eleitor discorda de todos os outros. As chances disto ocorrer são 12/216, ou 5,6%. Pequena, é verdade.

Aumente o número de concorrentes à escolha, contudo, e as chances de que um paradoxo eleitoral surja aumentam rapidamente. Com sete concorrentes e ainda três diretores, a chance de um paradoxo se aproxima já dos 24%. Com sete concorrentes e um número de milhões de eleitores, as chances de um paradoxo surgir aumentam e aproximam-se do limite matemático de 37%. Aumente o número de concorrentes e de eleitores, e as chances de um paradoxo eleitoral podem chegar rapidamente a 100%.

Kenneth Arrow recebeu o prêmio Nobel de economia em 1972 por seu teorema sobre essa “pequena dificuldade”, expandindo toda uma nova área do estudo econômico, a Teoria da Escolha Social.

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“E agora, quem poderá nos defender?”
Devemos buscar o Grande Irmão ditador que nos livre da mentira matematicamente comprovada da democracia, através da Verdade Única do IngSoc? Bem, não tão rápido.

Os pressupostos “minimamente razoáveis” do teorema de Arrow para sistemas de votação são sim razoáveis, mas como muitas questões matemáticas, sua aplicação na vida real não é tão simples. Pode-se, por exemplo, apontar que a escolha individual pode não ser necessariamente transitiva. Você pode preferir um cachorro a um gato, e um gato a um macaco com quatro bundas, mas talvez prefira um macaco de quatro bundas a um cachorro. A escolha é toda sua, e muitos concordariam que sua liberdade de escolha deve preceder o que nós julgaríamos como coerente.

Mais relevante, a criação de um macaco de quatro bundas pode afetar a preferência de muitas pessoas entre gatos e cachorros. Talvez este novo animal de estimação dê uma perspectiva toda nova sobre o que há para se gostar em um canino ou felino. A independência de alternativas irrelevantes, desta maneira, também não parece um critério tão rigorosamente aplicável.

E como prova matemática, o teorema de Arrow deixa de ser válido se seus pressupostos são relaxados ou deixam de valer também. Sem o veredito tumular do teorema de Arrow, descobrimos que há sim sistemas de votação que atendem bem a parte dos critérios razoáveis. Não se deve jogar fora a banheira junto com o bebê (ou alguma coisa assim), se a perfeição não é possível, ao menos aproximá-la é um objetivo plausível.

Os sistemas eleitorais a que estamos acostumados, infelizmente, estão muito distantes da perfeição – vulneráveis a todo tipo de situações incoerentes e manipulação. Votar em um único candidato entre uma série de alternativas, por exemplo, extrai o mínimo de informação possível de cada eleitor. É extremamente comum que se vote contra um candidato e não a favor de outro, principalmente quando nos são oferecidas apenas duas escolhas em um segundo turno, no qual o voto majoritário pode paradoxalmente não refletir as vontades da maioria.

Um sistema eleitoral que reflita melhor as preferências dos eleitores poderia levar em conta todas as suas opções, não?

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Kiribati Já!
Há um sistema de votação centrado justamente neste aspecto. É a chamada contagem de Borda, utilizada para escolha de candidatos presidenciais em Kiribati, uma ilha do Pacífico, e para eleição de membros do Parlamento de Nauru.

Proposta pelo matemático francês Jean-Charles Borda em 1780, é claramente superior ao sistema “um homem-um voto”, e foi adotado pela Academia de Ciências Francesa até 1800, quando foi proibido por Napoleão, um Grande… Imperador.

Na contagem de Borda, cada eleitor deve ordenar os candidatos por ordem de preferência, e aqui está o detalhe simples, cada candidato ganha pontos de acordo com sua posição em tal ordem. A primeira escolha pode valer 3 pontos, a segunda 2, a terceira apenas um ponto. O candidato com mais pontos é o vencedor. Simples assim.

Como a contagem de Borda se sairia no BBB acima? Vejamos, cada concorrente aparece uma vez em primeiro, segundo e terceiro lugar, computando seis pontos. Ainda há o empate, mas o que ocorre quando um dos concorrentes sai da disputa? Se você computar os pontos de acordo com a preferência original, os dois candidatos restantes continuam com os mesmos pontos. Preservando a “memória” da ordem de preferências, a saída de um concorrente não cria vencedores a partir de um empate. Menos mal.

E quanto à Saúde, Penitenciária, Jeans ou Terno? Computando pontos de acordo com a Contagem de Borda, temos:

PJ: 7
PT: 7
SJ: 8
ST: 8

Ainda há um empate entre duas alternativas, mas aqui a preferência da maioria em questões isoladas (S e J) claramente vence as da minoria (P e T). Bem menos mal.

Ao dar grande relevância a todas as preferências e cada eleitor, a contagem de Borda favorece a eleição de um candidato de consenso, apoiado de uma forma ou de outra pela maior parte dos eleitores, e que pode não ser necessariamente o candidato majoritário. Um candidato que seja a primeira escolha da maioria, mas muito rejeitado pelo resto, pode perder para um que seja a primeira e segunda escolha de quase todos. Vence o consenso ao invés da “tirania da maioria”.

Apesar de superior ao “um homem-um voto”, a contagem de Borda ainda é vulnerável à manipulação, a paradoxos, e o favorecimento do consenso ao invés da maioria pode desagradar a muitos, quem sabe mesmo à maioria. Não é, assim, “perfeita”. Outras alternativas em sistemas eleitorais incluem o método de Condorcet, que procura evitar justamente que surjam empates a partir de preferências circulares que o Marquês identificou há mais de dois séculos. Mas nenhuma delas será “perfeita”.

Todos sistemas eleitorais possuem seus pontos fortes e fracos, e rigorosamente, como provado por Arrow, nenhum deles será perfeitamente justo. Como ficou matematicamente claro nos anos seguintes à sua demonstração, sistemas eleitorais não só não refletem automaticamente o desejo dos eleitores, como são efetivamente jogos, sujeitos a estratégias ótimas e regidos assim pela teoria de jogos (PDF) desenvolvida por matemáticos contemporâneos de Arrow, como uma certa “mente brilhante”, John Nash.

Ter conhecimento da Terrível Verdade sobre a Democracia não deve ser nada agradável. Porém, estas questões fundamentais, encontradas não apenas na aplicação prática de sistemas eleitorais, como justamente em sua formulação matemática elementar, só ressaltam as palavras de um sujeito contemporâneo de Borda, e que nasceu no mesmo ano que o Marquês de Condorcet.

Já dizia ele que o preço da liberdade é a eterna vigilância. Não se sinta livre por simplesmente votar, e se o voto direto a que temos direito é claramente uma grande conquista, não é de forma alguma o ponto final de nosso desejo de liberdade e igualdade. Ainda há muito a conquistar.

E você pode bradar com toda a segurança que isso é provado matematicamente, tão certo quanto 1+1 é igual a 2.

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* Que a sigla usada no exemplo seja PT é mera coincidência. Esta coluna é largamente baseada na apresentação do teorema de Arrow no livro “Impossibility“, de John Barrow, onde a posição PT significa “Private health care” e “lower Taxes”.

** Essa coluna nem ao menos tenta apresentar uma prova formal do teorema de Arrow, mas você não só pode como deve estudar as diversas provas do teorema (PDF) oferecidas abertamente pela rede caso tenha se interessado pelo assunto.