A Marreta Nuclear e a Engenharia para Humanos

É um conto russo bom demais para ser verdadeiro:

“Em 1980, quando um grupo de oficiais inspetores do Estado-Maior visitando o quartel-general das Forças de Mísseis Estratégicos perguntou ao general Georgy Novikov o que ele faria se recebesse a ordem de lançar mísseis mas o cofre contendo os códigos de lançamento falhasse em abrir, Novikov disse que ele ‘arrebentaria a tranca do cofre com a marreta’ que ele mantinha próxima”.

Talvez nenhum outro projeto de engenharia deva ser tão resistente a falhas, ao pior do que os mais impensáveis erros humanos possam provocar, do que o sistema que guarda códigos de lançamentos de mísseis nucleares. Se há algo que jamais pode falhar, é a engenharia do sistema de lançamento de mísseis nucleares.

E no entanto, os russos contam a história de que não só o general em comando no quartel-general da Força de Mísseis Estratégicos mantinha à mão uma marreta para arrebentar o cofre, como ao saber disso seus superiores decidiram que:

“No momento os inspetores criticaram severamente a resposta do general, mas o oficial superior do Estado-Maior disse que Novikov estaria agindo corretamente [ao recorrer à marreta para arrebentar o cofre]. Desde então, a marreta tem estado em serviço no quartel-general das Forças de Mísseis na cidade fechada de Vlasikha, na região de Moscou”.

A história lembra a fábula da caneta espacial – americanos teriam investido milhões para criar uma caneta que funcionasse em microgravidade, enquanto russos teriam solucionado a questão usando um simples lápis.

São excelentes histórias, mas seriam verdadeiras? O que a marreta nuclear pode dizer sobre o futuro da humanidade?

O Lápis e o General Novikov

A fábula da caneta espacial é falsa – tanto americanos quanto russos usaram variedades de lápis desde o início de seus programas espaciais, até que a Fisher, uma companhia americana, desenvolveu com recursos próprios e privados uma “caneta espacial” adequada que foi então vendida a americanos e russos. O preço? Menos de 6 dólares cada.

E quanto à marreta nuclear?

A fonte da história é a agência oficial RIA Novosti, que disponibilizou a nota em inglês e no original em russo. Quem a contou foi um certo Vadim Koval, porta-voz, e surpreendentemente Vadim Koval existe e tem um formulário de contato. Eu ia confirmar com ele se a história publicada pela RIA Novosti é verdadeira, mas o formulário está em russo. Se alguém puder escrever em russo e conseguir uma resposta, avise! Por favor, não tentem enviar perguntas via Google Translate.

Através do Translate e arriscando cirílico, o que descobri, ou o que não descobri foi um general Georgy Novikov. Descobri sim que um certo Valentin Novikov serviu no QG das Forças de Mísseis e parece ter a idade certa. Teria o porta-voz Koval errado o nome do general?

É muito provável que a história da marreta seja no mínimo meia verdade – ou meia mentira. Na versão em russo, a pergunta feita ao general se centra na situação de que ele teria apenas um minuto para cumprir a ordem de lançamento e não conseguisse abrir o cofre. Por algum motivo esse detalhe não foi traduzido na versão em inglês.

Se a história do general Novikov e sua marreta foi, ou não, apenas uma piada de humor tipicamente russo, há uma outra surpreendente história com um general reformado russo, e essa possui várias confirmações.

O Sol e o General Petrov

Em 26 de setembro de 1983, Stanislav Petrov era o oficial em serviço no centro de comando no novo e sofisticado sistema de alerta Oko. Ele era composto por satélites espaciais em um projeto desenvolvido por mais de dez anos e colocado na ativa apenas no ano anterior. Os satélites detectariam do espaço a radiação infravermelha específica emitida pelos foguetes de mísseis nucleares disparados dos Estados Unidos.

Pois naquela noite os satélites detectaram essa temida radiação infravermelha, bem específica. Um alerta após o outro, o sistema Oko avisava que os americanos estavam lançando um ataque nuclear contra a União Soviética. Era dever de Petrov validar tais alertas de ataques surpresa e encaminhá-los ao Comando Central Soviético.

Se a situação colocada ao talvez fictício general Novikov e sua marreta era hipotética, sabemos que aquela enfrentada pelo general Petrov foi muito real. No total o sistema acusou cinco mísseis balísticos intercontinentais disparados dos EUA em direção à União Soviética. Para dificultar ainda mais a situação, soviéticos temiam que as forças da OTAN aproveitassem um exercício militar sendo conduzido à época para lançar justamente um ataque surpresa.

Apesar dos avisos do sofisticado sistema de engenharia, Petrov avaliou que os alertas eram falsos. O seu dever em comando era julgar se o alerta era válido, e ele julgou cautelosamente que apenas cinco mísseis não faziam sentido, que o sistema ainda era muito novo e pouco testado, e que a falta de confirmação do lançamento de outras fontes como radares em terra indicava que o alerta era falso.

Hoje sabemos que Petrov estava certo, é claro. Os EUA não haviam iniciado uma guerra nuclear, não havia nenhum ataque surpresa. O sofisticado sistema de alerta de satélites tinha uma falha: em condições muito raras, mas que ocorreram justamente naquele dia, nuvens na alta atmosfera podem refletir a luz solar exatamente na forma e posição corretas para confundir os sensores infravermelhos. O que o sistema Oko havia detectado não era a chama dos foguetes com ogivas nucleares, eram apenas nuvens iluminadas pelo Sol. Para corrigir isso, o sistema foi depois complementado por outro conjunto de satélites em órbitas diferentes para garantir que a geometria do Sol não cause falsos alertas – ou, efetivamente, janelas em que o sistema não consegue distinguir entre nuvens iluminadas e mísseis a caminho.

Porém naqueles momentos cruciais da Guerra Fria, tudo que havia nos separando de um Apocalipse Acidental provocado por um sofisticado, mas pouco testado, sistema de engenharia espacial era um conjunto de seres humanos a começar por Petrov. E Petrov, já no início da cadeia, decidiu pela cautela.

À Prova de Humanos, a Prova de Humanos

Steve Jobs seria um bom projetista para os sistemas de lançamentos de mísseis – todos poderiam comprar estilosos silos nucleares, mas nenhum usuário poderia acessar os códigos de lançamentos de mísseis, exceto por um comando aprovado on-line pelo quartel-general da Apple. Essa é a engenharia à prova de falhas aplicada nos sistemas de defesa nuclear.

Um general com uma marreta acessando os códigos à força é preocupante, mas seja a história verídica ou não, relembra que ironicamente na mais sensível das tarefas de engenharia, aquela que literalmente decide diariamente o futuro da humanidade, apesar de sistemas sofisticados, são seres humanos que sempre estiveram, e continuam, tomando as decisões. Não poderia ser diferente, a decisão de apertar ou não o botão vermelho do Apocalipse sempre deverá ser humana.

Em mais de meio século, chegamos várias vezes muito perto do fim. Em todos eles, ao que sabemos, seres humanos demonstraram o máximo valor comum e decidiram pela cautela. Ninguém em posição de comando jamais desejou apertar o botão. Em momentos de incerteza, sempre decidiram pela cautela. Ninguém em posição de comando jamais desejou iniciar o Apocalipse.

Não podemos contar indefinidamente com a prudência dos que estão em comando, a única situação aceitável a longo prazo é que simplesmente não existam mais botões vermelhos e nada nem ninguém possa lançar mísseis nucleares. Eles simplesmente não podem existir, para que por propósito ou acidente nada nem ninguém possa acabar com toda a vida na Terra. Colocados à prova, provamos nosso valor não apertando o botão vermelho. Mas esta é ultimamente uma demonstração sem sentido de valor, o verdadeiro desafio é saber fabricar armas nucleares, mas não fabricá-las. Como espécie, ainda não vencemos este desafio. Ele não é um desafio científico, muito menos de engenharia — é um desafio político e moral.

Porque se em aviões em que é proibido fumar é obrigatório que banheiros tenham cinzeiros, vale lembrar que muitos generais ainda fumam charutos.

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