Todo Mundo em Pânico – Parte 3


No dia 28 de maio de 2005, um insuspeito estudante ginasial voltava para casa de bicicleta na província de Saitama, Japão, quando foi atacado por um gorila invisível. Ou melhor, foi atingido na perna por uma afiada lâmina de aço triangular maliciosamente fixada no guardrail da estrada – algo como uma armadilha, que você confere na imagem ao lado.

laminametal321hj.jpgAs autoridades rapidamente começaram a investigar o caso. Para seu espanto, nos dias seguintes constatariam mais de 4.200 outras lâminas presas em guardrails, prontas para causar mais vítimas. Pouco mais de uma semana depois, mais de 40.000 lâminas seriam descobertas fincadas em estradas por todas as províncias japonesas.

É assustador“, comentou o jornal Asahi. “Por que tais objetos, tantos deles, por todo o país? Se foram instalados intencionalmente, é um sério crime“. Na apreensão e confusão promovida pela mídia, o “mistério das lâminas de aço” provocou todo tipo de especulações e declarações. Afinal, é o país onde um culto de adoradores de ficção científica Nova Era que bebia a água do banho de um mestre cego tentou provocar o Apocalipse, um metrô de cada vez. No caso, o culto Aum Shinrikyo e seu atentado com gás sarin no metrô de Tóquio em 1995, quase dez anos antes.

Mistério? Solucionado.

MANCHAS NO PÁRA-BRISA
Antes de resolver o mistério das lâminas japonesas, vale notar que parece haver algo misterioso em rodovias. De lendas da caronista fantasma a abduções alienígenas, o asfalto parece ser um elemento propício para a manifestação sobrenatural, concentrando as almas de incontáveis zooplânctons e algas falecidos e submetidos a altíssimas pressões por muitos anos. Cemitério indígena? Rodovias são imensos cemitérios de seres pré-históricos onde veículos andam queimando mais restos mortais extraídos de seu devido local de descanso a grande profundidade. Deveríamos esperar alguma fúria sobrenatural deles. Ou não. De toda forma, divagamos, e o asfalto foi também o catalisador da epidemia de manchas no pára-brisa em Seattle.

seattlemanchadt43.jpgEm 23 de março de 1954 começaram a surgir relatos de pára-brisas danificados. Pequenas manchas, bolhas, lascas e incrustações que a polícia inicialmente atribuiu a vândalos, mas como no caso japonês meio século depois, logo se descobriu que as dimensões do fenômeno ultrapassariam qualquer explicação convencional. Em 14 de abril, centenas de telefonemas inundavam a central, com milhares de casos relatados. No dia seguinte, o alarme era tanto que o prefeito de Seattle telefonou para o comandante-em-chefe, o então presidente dos EUA Dwight Eisenhower.

As especulações iam do adorável ao compreensível. Talvez fossem “ovos de mosca que tinham sido depositados de alguma maneira no vidro e depois tinham sido chocados”. Ou talvez fossem precipitação radioativa conseqüência dos testes de bombas de hidrogênio sendo conduzidos por então. Se não criariam um Godzilla, estavam afetando os pára-brisas de carros – e se afetavam os carros, o que poderiam estar causando em seres humanos?

A solução a este mistério em particular, contudo, não poderia ser mais decepcionante. Como conta o sociólogo Robert Bartholomew, “uma investigação por Nahum Z. Medalia da Instituto de Tecnologia da Geórgia e Otto N. Larsen da Universidade de Washington determinou que as manchas sempre tinham existido e tinham sido o resultado de eventos mundanos como o desgaste comum pelo uso na estrada, mas tinham passado despercebidas. … Durante o episódio, o Governador contatou o Laboratório de Pesquisa Ambiental na Universidade de Washington para analisar os relatos. Eles informaram que os misteriosos grãos pretos e fuliginosos achados em muitos pára-brisas eram cenosferas – partículas minúsculas produzidas pela combustão incompleta de carvão betuminoso. Tais partículas, foi notado, tinham sido por muitos anos comuns em Seattle, e não poderiam marcar ou penetrar os pára-brisas”.

Isto é, as manchas sempre estiveram lá, mas só foram percebidas, e aos milhares, quando pensaram em procurá-las. Nada de Godzilla, nada convencional, e talvez soe pouco convincente. O que nos leva de volta ao Japão.

RASPADINHA
No arquipélago do oriente as autoridades também solucionaram a questão de forma decepcionante. Nada de desbaratar um culto inserindo lâminas triangulares de proporções douradas seguindo as Linhas de Ley para canalizar a Kundalini e salvar o país da recessão (ou provocar o Apocalipse, tanto faz). Não, o Ministério dos Transportes e Rodovias e a Federação Automotiva Japonesa conduziram testes químicos nas lâminas e simulações chatas e científicas com automóveis.

Análises das lâminas de metal revelaram que eram de mesma composição que a carroceria de automóveis. Também tinham a mesma espessura. Algumas lâminas estavam visivelmente corroídas, indicando que estavam incrustadas já há um bom tempo. Mas como partes da lataria de automóveis ficariam presas em guardrails?

Com batidas, claro. Ao colidir o veículo em movimento lateralmente no guardrail, rebites salientes podem rasgar a lataria, que acaba se desprendendo exatamente em um formato triangular. Sendo o Japão, diversos testes foram feitos e exibidos publicamente.

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Isto é, as lâminas sempre estiveram lá, mas só foram percebidas, e aos milhares, quando pensaram em procurá-las. Ou nem tanto. Quando o assunto primeiro veio à tona, algumas autoridades e membros da população especularam que seriam apenas pedaços de lataria provocados por batidas no guardrail e que já haviam visto tais lâminas há tempos em diversos locais. Mas isso não vende jornais, não aumenta a audiência, não provoca pânico. Alguns especialistas de início chegaram mesmo a declarar que não poderiam ser pedaços de lataria – o que, posteriormente, provaria ser um erro. “Especialistas” também se enganam, principalmente quando a mídia procura declarações que alimentem um mistério inexistente.

Mais do que lâminas de metal ou manchas no pára-brisa, é o que há em comum entre estes dois casos que é de nosso interesse.

ATENÇÃO
Já abordamos alguns dos “bugs” de nosso cérebro, mas se você pensa ser imune a ilusões coletivas como foram as manchas em Seattle ou as lâminas no Japão, veja se consegue assistir a este vídeo e contar corretamente o número de passes de bola realizados. Vá lá, experimente contar os passes. Contou?

Espero que tenha contado, porque acaba de ser iludido. No vídeo, parte de um estudo sobre cognição visual, o que importa não são os passes de bola, mas sim o fato de que um gorila (ou um homem vestido de gorila) anda pelo meio das pessoas. Caso não o tenha notado, assista de novo ao vídeo, pode ser uma das maiores surpresas de sua vida. Parabéns, você é um ser humano falível como todos nós.

Se por outro lado você notou o gorila enquanto se concentrava em contar os passes de bola, parabéns também. Talvez queira conferir o incrível truque de baralho com cores que mudam?

Pessoas geralmente olham através de pára-brisas, não para os próprios. Também não é comum prestar atenção a guardrails ao dirigir por estradas. Não é surpresa que as manchas ou lâminas não fossem percebidas, até que por uma conjunção tanto complexa quanto fortuita de fatores, as pessoas subitamente notassem a sua existência.

São gorilas invisíveis até que você decida olhar para eles. O que pode soar como mera curiosidade, mas é uma lição importantíssima aplicável a outros “mistérios” mais conhecidos.

Em 2002, por exemplo, houve uma onda de “mutilações de gado” sem precedentes na Argentina. Rumores sobre o chupacabras foram quase instantâneos. Mais de 200 casos de bovinos “cirurgicamente” mutilados, que após investigação governamental acabaram atribuídos a um simples roedor carniceiro. Testes e análises demonstraram como as mutilações “cirúrgicas” não eram tão cirúrgicas assim, sendo em verdade idênticas às causadas pelo roedor.

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Nada disso convence a alguns, ou mesmo a muitos. Afinal, há veterinários, criadores e tantos especialistas dizendo que nunca haviam visto mutilações como aquelas. E se as causas eram tão comuns, por que o mistério surgiu subitamente em 2002? Chupacabras pareceriam uma solução muito mais razoável.

Mas gorilas invisíveis talvez façam parte da verdadeira resposta.

A ufologia em geral é um grande habitat para gorilas invisíveis. Já foram conduzidos experimentos divertidos onde se criaram discos voadores falsos, que foram divulgados pela mídia como casos “misteriosos” e foram o estopim para uma série de outros avistamentos sinceros, mas tão irreais quanto o original. Olhe para o céu e acabará vendo um gorila invisível.

HISTERIAS E ILUSÕES
Que as manchas, as lâminas, o gado mutilado ou os OVNIs se tornem subitamente notáveis graças ao fenômeno dos gorilas invisíveis não responde a todas as questões, nem banaliza tais fenômenos.

As manchas em Seattle estiveram relacionadas com temores sobre testes nucleares, mas por que surgiram no momento e local em que surgiram, é uma questão muito mais complexa. As lâminas de metal no Japão foram desencadeadas por um incidente com vítima, mas o fato de que alguns incidentes anteriores não provocaram a mesma comoção nacional sugere que talvez uma ausência de notícias interessantes na época ou o simples acaso seja algo essencial em ilusões coletivas desta natureza.

O gado mutilado e principalmente os OVNIs, por sua vez, são fenômenos mais disseminados e persistentes. Há ainda questões não resolvidas. Mas o fator ilusório, o gorila invisível também está presente, e dele há provas, ao contrário de chupacabras e extraterrestres.

Nas colunas anteriores mostramos como a histeria nunca deixou de existir, e como alguns surtos recentes são particularmente bizarros, e a nós, obviamente irreais. Pentes robóticos sionistas derretedores de pênis (lembrou da frase?) são algo claramente imaginário. Os sintomas que provocam, contudo, são reais. São histerias, transtornos de conversão, síndromes de stress pós-traumático, distúrbios de ansiedade e afins.

Nos casos que abordamos aqui, não houve sintomas relatados por pessoas, e portanto, a rigor não houve histeria, e sim mera ilusão coletiva. Podemos nos enganar de todas as formas, e nem sempre achamos que estamos doentes. Podemos achar que pára-brisas, guardrails ou vacas andam sendo atacados por algo misterioso, quando subitamente resolvemos olhar para eles. Este não é, contudo, o único mecanismo envolvido em ilusões coletivas. Em outras colunas iremos nos concentrar melhor em ilusões e histerias particulares, como as exploradas em religiões e cultos modernos, incluindo o da televisão.

Nesta série de colunas espero ter ao menos despertado alguma suspeita de que fenômenos sociais coletivos, de histerias a ilusões, continuam assombrando o primata visível.

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Veja mais:
Transtorno do Espectro Histérico (ou Histriônico);
A Maldição Africana: Crenças Mágicas;
Protean nature of mass sociogenic illness: From possessed nuns to chemical and biological terrorism fears;
Mass Delusions and Hysterias: Highlights from the Past Millennium.