Watchmen e a Idiocracia

Em 21 de setembro de 1987, o homem mais poderoso do mundo em uma das épocas mais cruciais de nossa história fez um discurso atípico na Assembléia Geral das Nações Unidas.

“Penso de vez em quando quão rapidamente nossas diferenças por todo o mundo desapareceriam se enfrentássemos uma ameaça alienígena de fora deste mundo”, pronunciou Ronald Reagan.

Não era a primeira, tampouco a última vez em que o ator de Hollywood então presidente mencionava extraterrestres como a salvação para a humanidade em seus momentos de maior perigo. E não apenas um contato com extraterrestres, mas uma ameaça alienígena.

A estranheza do evento é natural, motivo para todo tipo de suspeitas, afinal não é sempre que um episódio de Além da Imaginação chega tão próximo da realidade. <spoiler>Só não é algo mais notável que o fato do discurso de Reagan ecoar o desfecho de Watchmen, publicado apenas dias depois.</spoiler>

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Reagan e o Spoiler

Não vou comentar em detalhes o final de Watchmen, seja na HQ ou em sua versão cinematográfica, que já devo ter estragado. Aos que ainda não conhecem nenhuma das versões, peço desculpas, mas saber que o final tem relação com o discurso de Reagan é apenas parte da trama, que vale muito a pena. Também não quero adentrar muito na área que o Raphael Fernandes certamente domina com maior profundidade.

A idéia de uma ameaça extraterrestre unir os povos na Terra não é nova, e pode ser lida nas entrelinhas mesmo nas primeiras obras de ficção científica moderna como A Guerra dos Mundos de Wells no final do século 19.

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Mais especificamente, a primeira temporada de “The Outer Limits” em 1963, exibido no Brasil como “A Quinta Dimensão”, contou com o episódio “Os Arquitetos do Medo”. Na história, um grupo de cientistas forja uma invasão alien na Terra para acabar com nossos conflitos internos. Familiar, não?

Não é difícil imaginar que Reagan tenha assistido ao episódio de ficção na TV. Daí para o tema se tornar alvo de reflexão constante e chegar a um discurso na ONU é onde queremos chegar nesta coluna. Não sem antes comentar um par de outras coincidências, como a de que “Arquitetos do Medo” foi exibido dias antes do assassinato de Kennedy. Outro tema de Watchmen.

Reagan já havia mencionado a idéia de uma ameaça ET durante seus primeiros anos na presidência. Há rumores de que teria feito comentários a Spielberg quando assistiu a “E.T.” na Casa Branca, embora a fonte desta história seja em si mesma uma figura associada a uma fraude ufológica sobre a conspiração do governo com aliens. É uma colcha sem fim de ironias, alguns diriam sincronicidade, mas novamente nos distanciamos do tema central.

E a pergunta aqui é: se “A Quinta Dimensão” pode ter inspirado Reagan, quem inspirou Alan Moore, roteirista de Watchmen? Bem, enquanto o próprio episódio “Arquitetos do Medo” é citado na HQ, Moore diz não ter tomado o episódio como fonte e não pude encontrar referência ou mesmo comentário sobre se os discursos do presidente caubói poderiam ter influenciado o roteiro da série. É muito pouco provável que o tenham feito, tanto pelo curto prazo, como porque para Moore e o ilustrador Gibbons, extraterrestres realmente não eram tão importantes como aparentemente eram para Reagan.

“O mote principal da história gira em torno do que é chamado macguffin, de forma que a trama em si não tem grande importância não é realmente a coisa mais interessante em Watchmen. Como contamos a história, é onde a verdadeira criatividade entrou em ação”, explicou Moore. Aos que não apreciaram a versão cinematográfica pelo seu desfecho, talvez menos atenção devesse ser dada ao macguffin, ao menos de acordo com o roteirista original.

O que também sugere que a coincidência entre Watchmen, Reagan e ameaças extraterrestres seja apenas uma coincidência. Longe de se encerrar aí, contudo, esta teia de relações pode levar ainda mais longe do que uma grande conspiração entre roteiristas ocultistas e presidentes de Hollywood.

ETs, Astrologia e o Muro de Berlim

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Ao paranóico de plantão, as declarações de Reagan devem ter necessariamente um grande significado. O presidente dos EUA, evidentemente, deve ter conhecimento sobre a presença alienígena na Terra. Talvez até acordos. Estariam os extraterrestres ameaçando quebrar seu acordo lá em meados dos anos 1980? Que acontecimentos gravíssimos ocultados do público não estariam ocorrendo para levar a tão estranhas declarações?

Todas estas questões são relevantes, mas apenas se você presumir que as declarações de Reagan devam necessariamente ter um grande significado, um grande motivo. Talvez tenham, mas considere a possibilidade de que talvez não.

Perceba como seria curioso que extraterrestres resolvessem ameaçar o planeta logo depois de Watchmen ser publicado. A menos que se considere que Alan Moore também saiba de “algo mais”, seria no mínimo uma enorme coincidência descobrir o futuro da humanidade em uma HQ. Ainda mais quando o próprio Moore considera os ETs em sua história como um macguffin.

Fato é que ameaças ETs não eram a única idiossincrasia de Reagan. Desde os primórdios de sua carreira política, Ronald e sua mulher Nancy também foram influenciados por astrólogos. De horóscopos. De jornal.

Uma das mais famosas astrólogas e profetas nos EUA, Jeane Dixon, agradou bastante aos Reagan a ponto de aconselhá-los por décadas. O fato de que Dixon fez muitas previsões espúrias que falharam de forma retumbante – como o início da Terceira Guerra Mundial e outras catástrofes apocalípticas, bem como que os russos pisariam primeiro na Lua – não a tornou menos favorecida. Seus poucos acertos eram lembrados enquanto seus muitos erros eram esquecidos. É a validação subjetiva.

Foi apenas quando a astróloga predisse que Reagan não teria sucesso em sua ambição à presidência em 1976 que os Reagan deixaram de acreditar em seus poderes. Ironicamente, nesta previsão Dixon estava correta, Reagan só concorreu e ganhou a presidência quatro anos depois.

Depois de desfavorecer Dixon, os Reagan deixaram de consultar astrólogos? Seria uma questão relevante, mas o fato é que eles simplesmente trocaram de astróloga. Nancy Reagan passou a consultar Joan Quigley, e o admitiu quando sua influência nas decisões mais importantes da nação teriam sido expostas por um antigo funcionário da Casa Branca. Embora a verdadeira influência de Quigley provavelmente não tenha sido tão grande (esperamos!), Nancy escreveria que “estava fazendo tudo em que podia pensar para proteger meu marido e mantê-lo vivo”. A Primeira-Dama expressava como consultar uma astróloga protegeria o homem mais poderoso do mundo, a última linha decisória entre nós e o apocalipse nuclear.

A astróloga Quigley, a propósito, também fez uma série de previsões grosseiramente incorretas. E nem ela, nem Dixon, nem nenhum vidente realmente previu a queda do Muro de Berlim e a implosão da União Soviética.

Considere, assim, a possibilidade de que os Reagan consultaram por décadas charlatães. Não é preciso aceitar que Dixon ou Quigley fossem charlatães, mas considere a possibilidade de que essas astrólogas com inúmeras previsões ridiculamente fracassadas, incapazes de avisar o mundo sobre as verdadeiras e maiores mudanças históricas por que passamos, fossem apenas simples e toscas trambiqueiras. Há certa evidência sugerindo tal. E se esse era o caso, os Reagan foram enganados por décadas.

Você não presumiria que um casal capaz de ascender aos cargos mais poderosos e em vários sentidos mais importantes da espécie humana pudessem ser enganados por simples e toscas trambiqueiras. Que alguém que previu que os russos pisariam primeiro na Lua teria suas previsões tomadas com muito ceticismo. Mas, considere a possibilidade. Há certa evidência sugerindo tal.

Considere, por fim, que talvez, talvez nem todas as declarações públicas de Reagan tivessem assim um grande significado ou fossem cuidadosamente orquestradas e planejadas. É uma possibilidade.

The Men Who Stare at Goats

Deve ser lançado em novembro nos EUA, ainda sem data prevista no Brasil, o filme “The Men Who Stare at Goats”, com Ewan McGregor e George Clooney nos papéis principais, apoiados por nada menos que Kevin Spacey e Jeff Bridges. Baseado no livro homônimo do jornalista britânico Jon Ronson, se a concretização parcial de um enredo fictício de “A Quinta Dimensão” parecia surreal, aqui temos como o inverso é ainda mais inacreditável. Do roteiro clichê hollywoodiano completo com um protagonista com problemas conjugais (McGregor) e um vilão que “aprontará muitas confusões” (Spacey), os detalhes mais bizarros são completamente reais.

O próprio Ronson produziu também uma série imperdível de documentários derivada de seu livro (e vice-versa), Crazy Rulers of the World:

No clipe acima com o primeiro episódio, é apresentado logo no início o Major General Albert Stubblebine III, comandante geral do Comando de Inteligência e Segurança do Exército dos EUA de 1981 a 84. Ele se tornou mais conhecido talvez porque tentou caminhar através de paredes, batendo seu nariz inúmeras vezes no processo. Se é difícil acreditar que o comandante geral da inteligência do exército americano, superior a dezenas de milhares de soldados, se jogasse contra a parede de seu escritório almejando vencer essas ilusórias limitações materiais, o próprio Stubblebine conta a história no vídeo. Ronson não inventou ou distorceu suas palavras, e no trailer do filme podemos ver uma versão Hollywoodiana do caso com um soldado se jogando contra a parede.

Os detalhes mais bizarros da comédia de Hollywood são completamente reais.

Depois conhecemos Jim Channon, tenente-coronel do exército americano. Channon foi o criador do manual First Earth Batallion, que promove novas e heterodoxas técnicas de guerra envolvendo “guerreiros espirituais”, que farão a América “liderar o mundo ao paraíso”, utilizando poderes psíquicos, incluindo yoga e meditação. Provavelmente influenciou a Stubblebine, e fato é, com certeza influenciou o alto escalão militar, como Ronson estabelece em entrevistas com o coronel John Alexander, conhecido por promover o desenvolvimento e uso de armas não-letais. Inspiradas pelas idéias de Channon, que no filme é interpretado por Jeff Bridges.

Os detalhes mais bizarros da comédia de Hollywood são completamente reais.

Mesmo o título do filme é completamente real, embora inacreditável. The Men Who Stare at Goats, ou “Os Homens que Observam Cabras”, se refere ao projeto militar para estudar e aplicar o poder de matar animais simplesmente olhando para eles. É o exército americano financiando pesquisas para o uso militar do mau olhado.

Aqueles mais familiares com as histórias e lendas do insólito talvez já tenham ouvido falar que a russa Nina Kulagina teria conseguido parar o coração de um sapo com seus poderes mentais, e mesmo o israelense entortador de talheres Uri Geller já contou em sua auto-biografia (que também virou um filme imperdível, Mindbender), como militares teriam tentado coagi-lo a usar seus dons paranormais para o mal. Este é inclusive o clímax do filme Mindbender – antes disso há um momento épico em que ele é assediado por uma mulher e em sua excitação provoca inadvertidamente um tornado.

Pois bem, alguns poderiam considerar a história sobre militares estudando entortadores de talheres como tão dignas de crédito quanto furacões provocados por alguns amassos, mas apenas se presumirmos que militares sejam líderes racionais. Como a esta altura você já deve ter imaginado, e é todo o ponto desta coluna, eles nem sempre são.

A história de Geller, pelo menos sobre a tentativa de usar poderes psíquicos para matar animais, é real. O Stanford Research Institute também esteve envolvido com a pesquisa de Visão Remota, financiada com milhões pela CIA, sem resultados concretos, e o que é ainda mais absurdo é que Ronson descobriu que os militares aparentemente ainda continuam tentando matar cabras com mau olhado.

No primeiro episódio de sua série, Ronson entrevista um dos envolvidos no projeto militar de matar cabras com a força da mente. O suposto paranormal se oferece para matar um hamster como demonstração. Confira os resultados abaixo:

Nem deve ser preciso dizer que a série se traduz como “Governantes Loucos do Mundo”.

Que o Mundo Acabe (mas sob Controle!)

“Tribos das ilhas Trobriand que pescam no mar profundo, onde tempestades repentinas e águas desconhecidas são preocupações constantes, têm muito mais rituais associados à pesca do que aquelas que buscam peixes em águas mais rasas. Pára-quedistas vêem mais facilmente uma figura não-existente em um monte de ruído pouco antes de pular do que quando em terra. Jogadores de beisebol criam rituais em proporção direta à caprichosidade de sua posição – por exemplo, lançadores são particularmente propensos a enxergar conexões entre a camisa que vestem e seu sucesso. … Mesmo em nível nacional, quando os tempos são economicamente incertos, as superstições aumentam”.

O trecho é parte de um trabalho publicado na Science em 2008, que não se resume apenas a relatos. Jennifer Whitson e Adam Galinsky conduziram seis experimentos que confirmaram a tese de que a sensação de falta de controle aumenta a percepção de padrões ilusórios, fazendo pessoas verem algum significado onde realmente não há.

A série de experimentos é interessante pela variedade de padrões ilusórios que averiguou, como ver imagens em ruído, desenvolver superstições, mesmo formar correlações ilusórias sobre informações de bolsas de valores e… enxergar conspirações.

“Experimentar uma perda de controle levou os participantes [do experimento] a desejar mais estrutura e a perceber padrões ilusórios. A necessidade de estar e sentir-se em controle é tão forte que os indivíduos produzirão um padrão a partir do ruído para levar o mundo de volta a um estado previsível”, escrevem os pesquisadores.

Suponha que nossos líderes não estejam totalmente em controle. Naturalmente, muitos presumirão que se Lula ou Obama não estão realmente no controle, alguém, ou algum outro grupo sinistro e todo poderoso deva estar. Mas não é esta a hipótese que lhes convido a considerar. É a hipótese de que nem Lula, nem Obama, nem nenhum grupo sinistro e poderoso realmente controle com muito sucesso o nosso presente e futuro.

Que mesmo as figuras mais poderosas no planeta, detentoras do poder de aniquilar toda a vida terrestre ao apertar um botão, possam estar tão perdidas sobre o futuro da humanidade em dez anos quanto o gari que varre a sua rua. Que a Queda do Muro de Berlim tenha pego de surpresa a você, a astrólogos como Quigley e Dixon, a Reagan e a Gorbachev e mesmo ao supremo líder Illuminati que acha que controla o mundo. Que o 11/9 tenha sido realmente inesperado a George Bush.

É uma idéia desconfortável. Preferimos pensar que estes acontecimentos obedecem a um padrão, que se não nós, alguém sabia o que iria acontecer e mais, sabe o que irá acontecer.

Mas se um presidente americano pode expressar na Assembléia Geral da ONU idéias estranhas derivadas de um episódio de ficção científica na TV, se um comandante geral do exército americano pode achar ser capaz de atravessar paredes apenas tentando com fé suficiente, se milhões de dólares continuam sendo dedicados à idéia de usar mau olhado para combater terroristas, então o mundo é um lugar muito mais bizarro, complexo e imprevisível do que gostaríamos.

Enquanto alguns podem temer um mundo onde conspirações grandiosamente elaboradas por gênios do mal como as de Watchmen se tornam realidade, a perspectiva de viver em uma Idiocracia imprevisível movida por credulidade e estupidez pode ser ainda mais aterrorizante. E a realidade pode ser ainda uma mistura de ambos.

Ficou com medo? O medo, o terror, já é assunto para uma outra coluna.

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feb

“Sim! Há conspirações! E várias! Mas elas se anulam no caos. O mundo é controlado por palhaços infames”
Alan Moore [via @fsalvaterra]