O mochileiro moderno não passa de um clichê

Não importa se o destino é uma cidade repleta de calçadas lisinhas. Mochileiro moderno que se preza carrega toda sua bagagem nas costas, mas nunca usa uma mala de rodinhas. Não lhes interessa ações de ordem prática. O importante é manter a aura de aventureiro. Na composição desse estranho personagem – além da mochila que passa quase um metro acima da cabeça – estão as misteriosas fotos de costas para a câmera. Nessas imagens peculiares eles encaram o horizonte em uma ridícula simulação de espontaneidade. Há também a barba por fazer, os dreadlocks e o jeitão maltrapilho. No entanto, talvez as maiores características do mochileiro moderno sejam sua orgulhosa sovinice e seu chato monopólio da chamada “viagem de verdade”. É fácil encontrá-los se gabando de ter dormido em um pulgueiro só para economizar um dólar por dia como se desconforto proposital pudesse ser sinônimo de aventura. De onde surgiu uma bobagem dessas?

O mochileiro original – aquele que pegou a estrada em média até o início da década de oitenta – era uma criatura totalmente diferente do mochileiro que encontramos hoje. Durante quase um século a filosofia backpacker centrou-se em viajar com pouco dinheiro e de modo independente, sem o uso de agências. Não se tratava de uma manobra para que pessoas sem dinheiro pudessem conhecer outros países. A ideia dos pioneiros da mochila era outra, um pouco mais complexa. Para eles viajar com a grana contada e sem a ajuda de empresas especializadas era uma maneira de se aproximar dos habitantes locais. Para um mochileiro original conhecer um país era conhecer seu povo.

Esse comportamento era uma clara reação ao conceito tradicional de viajar. O turista médio conhece os lugares protegido por uma bolha de serviços turísticos. O contato com a cultura e a população locais não é tão importante quanto ver monumentos ou paisagens naturais.

Os primeiros mochileiros quebraram esse paradigma, mas a tarefa naturalmente não foi fácil. Em tempos sem internet, a única fonte de informação eram os raríssimos periódicos especializados e principalmente o boca a boca. Por isso em geral eles viajavam com a cara e a coragem, na tentativa e erro. Nesse contexto era comum esbarrarem com estradas sem asfalto, albergues sujos, praias sem estrutura e até cidades sem hospedagem. Por causa desse cenário tão incerto, fazia sentido levar tudo nas costas em uma mochila enorme e economizar ao máximo.

Acontece que as coisas mudaram. A Era da Informação chegou e transformou completamente a cultura backpacker e o comportamento do mochileiro moderno. Viajar de maneira independente tornou-se uma tarefa simples com o auxílio da internet e sua infinita capacidade de compartilhar conhecimento. O velho processo de tentativa e erro foi substituído por sites que oferecem opções de hospedagem, transporte e restaurantes com notas que avaliam suas qualidades. Em resumo, receber o rótulo de mochileiro ficou bem mais simples.

É claro que mochileiro contemporâneo nenhum dirá isso. Todos querem conservar a alma de aventureiro e isso fica claro em alguns traços do passado que foram conservados pelos modernos. O mais marcante deles é a própria mochila. Muitos deles levam essas mochilas em roteiros inteiramente urbanos, nos quais uma mala com rodinhas faria muito mais sentido do que carregar meia centena de quilos nas costas.

Quanto à hospedagem em albergues ruins só ocorre hoje quando se abre mão do planejamento mais básico. Já a tática de economizar – originalmente um plano para ficar mais perto do povo local – tornou-se uma competição infantil. Veja o caso do mochileiro que se gaba de dormir em uma cama suja em troca de uma economia irrelevante. É como se – para conservar a aura dos pioneiros – os mochileiros atuais confundissem desconforto forçado com aventura.

Infelizmente nesse processo a característica mais importante da filosofia backpacker foi deixada de lado: a interação com a população do país visitado. Entre em qualquer albergue pelo mundo e veja com seus próprios olhos. A área da recepção está repleta de jovens mochileiros. Alguns viajam juntos e formam grupos em volta de garrafas de cerveja. Outros se concentram no celular. Os poucos que conversam com desconhecidos o fazem apenas com outros estrangeiros. Interagir com um local só na hora de contratar um serviço ou ver uma apresentação cultural esterilizada. Isso não é viajar.

O mochileiro autêntico precisa voltar. Ele deve rechaçar os estereótipos e conhecer o mundo sem as amarras da modinha. Talvez decida puxar uma mala de rodinhas e não opte pelo albergue mais barato. Nada que o impeça de acampar numa praia deserta, almoçar na casa de um motorista de tuk tuk, viajar direto por dois anos ou só nas férias escolares. O mochileiro precisa se reencontrar com sua liberdade.

Um abraço!

Pedro Schmaus