Tarde demais, Fenômeno

RicardoTeixeiraAndresSanchesRonaldo

Recentemente, nosso um dia mais amado herói, responsável por carregar em suas costas todo o peso do orgulho de nossa redescoberta autoestima finalmente resolveu acordar para o quanto andava pisando em sua própria história e no amor que milhões, este que escreve incluso, o devotavam.

Sim, senhores, ele mesmo, Ronaldo Nazário, nosso Fenômeno, o indestrutível craque, jogador completo, capaz de atuar em qualquer posição que o colocassem do meio pra frente, dono de um domínio e controle de bola poucas vezes visto, rápido, de um raciocínio veloz como suas pernas, percebeu que andava dormindo e acordando com cobras e provando de seu veneno.

Antonio_del_Pollaiolo_-HerculeseaHidra(Ilustracao1tamanhocerto)

Ciente do quanto andou se contaminando com a imundície que cercou a preparação despreparada para a Copa da Fifa – hoje, infelizmente sabemos, aquilo nunca foi “do mundo”, mas de algumas dezenas de mafiosos, como muito bem lembrou o jornalista britânico Andrew Jennings em seus recentes livros sobre o futebol e a instituição -, o Fenômeno resolveu romper com o governo, respondeu ao Romário, se disse envergonhado com tudo que nossos (di)gestores nos fizeram, tirou foto ao lado do Aécio Neves.

Queria poder lhe dizer que isso é o suficiente, Ronaldo, que nossa admiração por você voltou com a mesma intensidade daquele já distante 2002, quando você resolveu ir reescrever o código samurai na terra dos próprios, e fez verter lágrimas daquele povo tão metálico, afiado e duro quanto suas espadas. Ensinou a eles o que é vencer ou morrer e não aceitar jamais a vergonha da derrota. Mas não dá.

Você se desonrou e nos levou junto, desgraçando-nos também em desonra, Fenômeno, quando começou a defender o indefensável visando a um dinheiro de que há muito não precisa. Desonrou e envergonhou seus mais ardorosos fãs quando cometeu aquela pérola da canalhice ao dizer que não precisa de hospital pra fazer Copa do Mundo. Claro que não, afinal a festa é pra vocês, podres e ricos, europeus de sangue, nascimento ou conta bancária.

RomarioPlenario(fotodoUOL-Ilustracao2)

Quando bandeaste pro lado de lá, entristeceu quem o tinha como modelo a ser seguido, aquele mesmo do herói que, não importa o tamanho da adversidade, enfrenta tudo e vence. Ou morre tentando. Acontece que você sobreviveu, doze anos se passaram desde aqueles gloriosos dias e o povo que você dizia amar tanto continuou na mesma vida de nenhuma perspectiva de futuro. Continuamos, ainda hoje, sob o império do conseguir o que comer amanhã. Apesar de alguns dos quais você até outro dia andava junto saírem apregoando não ser mais assim, pois os pobres já não são tão pobres, e 40 milhões agora estão na “classe média”, aquela mesma que pode arvorar-se de ter dado um passo além e evoluído às reservas pro próximo fim de semana.

Mas não foi só isso que nos levou a ter vergonha de um dia ter-lhe amado, Fenômeno, afinal você nunca candidatou-se a nada e, até onde sabemos, não superfaturou nem roubou. Envergonhamo-nos pura e simplesmente porque o senhor sabia, sim, o quão sujos eram os meandros e trâmites da Fifa e seus dirigentes, descobrimos por meio de sua proximidade com dom Ricardo Teixeira, de quem soubemos, chocados, ser você tão íntimo.

Infelizmente, nosso o herói morreu. E não foi em um ato final de auto-sacrifício digno de elevá-lo ao Olimpo ou numa batalha honrada o suficiente para abrir-lhe os portões de Valhalla. Não, nosso tragicômico (macunaímico?) herói que um dia fostes morreu porque foi engolido pelas urgências egoístas do jovem que viveu demais, envelheceu e tornou-se ele mesmo o vilão que um dia pensamos vê-lo combater. A indignação veio tarde demais, Ronaldo!

macunaima(UltimaIlustracao)

Rodivaldo Ribeiro é editor e escrevinhador dos sites Sedentário, Movier e do jornal Diário de Cuiabá.